São Paulo, dmingo, 03 de maio de 2009
FOLHA DE S. PAULO
COTIDIANO
GILBERTO DIMENSTEIN
Ilhas de civilidade
Um shopping, um hospital, Zé do Caixão e um cinema compõem a revitalização de uma cidade feia e violenta
NA QUINTA-FEIRA , foi divulgada oficialmente a pior notícia de toda a gestão Serra: o aumento de roubos e mortes em São Paulo, interrompendo uma queda de vários anos -o indicador de homicídios diminuía desde 1999. Os roubos bateram, agora, um recorde: crescimento de 19% nos três primeiros meses deste ano, em comparação com o mesmo período de 2008. A escassa boa notícia ficou por conta da cidade de São Paulo. Se no interior os assassinatos se expandiram em 11%, na capital a queda atingiu 6%. Isso ajuda a entender um dos mais interessantes e pouco reconhecidos fenômenos sociais do país: a resistência paulistana. A redução ocorre porque, em meio ao mar de selvageria, prosperam ilhas de civilidade -um dos sinais ocorre neste final de semana, com a Virada Cultural, numa demonstração de reconquista da rua. Essas ilhas de civilidade geram focos de resistência que se manifestam das mais diferentes formas.
O hospital Sírio-Libanês vem colaborando no currículo de uma escola de ensino médio frequentada só por alunos vindos da rede pública. Essa participação tornou-o parceiro de uma experiência cujo resultado foi visto na semana passada. Patrocinada por uma empresa (Embraer), a escola ficou, na lista do Enem, em primeiro lugar no Estado de São Paulo e em 9º lugar no Brasil. É uma façanha e tanto levando em conta que o colégio foi criado há seis anos e seus alunos são de famílias pobres. Uma empresa de shopping centers (Iguatemi) resolveu, em 2007, contratar profissionais para ajudar um colégio também público (Dr. Luís Arrobas Martins) na zona sul. Na divulgação, há duas semanas, dos resultados nas provas estaduais, eles ficaram em primeiro lugar em matemática na capital e em segundo, se computadas as demais matérias. O Iguatemi engrossou um movimento (Parceiros da Educação) em que empresários e executivos apadrinham colégios públicos, com métodos de gestão inovadores. O hospital e o shopping não são a única razão do desempenho dessas escolas; há vários parceiros e uma rede de apoios em ação. São Paulo é o epicentro do movimento pela qualidade de ensino, espalhando-se pelo país, graças, em parte, à elite econômica -e aí surgem "ilhas" como a Dr. Luís Arrobas Martins.
Neste final de semana, a cultura é o grande elo de uma cidade fragmentada, murada e amedrontada. Por 24 horas, na Virada Cultural, as ruas são tomadas como se fossem plateias em movimento. Pode-se saborear desde a encenação com fogos, danças e músicas de artistas franceses, no parque da Luz, até um Zé do Caixão falando contos de terror num cemitério e um festival de filmes de zumbis num cinema decadente -o próprio cinema um zumbi. Um shopping center sofisticado, um hospital de excelência, Zé do Caixão e um cinema tipo pulgueiro compõem, com todas as suas diferenças, a experiência de revitalização de uma cidade feia, violenta, desorganizada, deseducada. Sinal de desorganização: na quinta-feira, a Secretaria Municipal da Habitação informou que a população favelada cresce duas vezes mais rápido do que a média da cidade. Sinal de deseducação: a pior notícia de toda a gestão Kassab foi o fato de que os alunos do ensino fundamental conseguiram tirar notas ainda menores, segundo os testes municipais, mesmo depois do aumento salarial aos professores. E olha que já era péssimo. Para agravar a situação, a Secretaria Municipal da Educação sonega os dados detalhados sobre o desempenho de cada escola. Mas é nesta cidade que se arquitetou o pagamento de bônus a partir do desempenho dos professores da rede estadual, uma das medidas socialmente mais ousadas do país.
O trânsito e a poluição não param de piorar. Mas o efeito "ilha de civilidade" se olha, nas ruas, com a eliminação dos outdoors - que só pegou porque caiu no gosto popular. Foi aqui que se articulou, com amplo apoio da sociedade, a proposta (mérito de José Serra) de proibir o fumo em lugares fechados. A prefeitura resolveu, por pressão da sociedade, estabelecer metas sobre o que pretende fazer. A pressão é resultado da mais abrangente aliança (Nossa São Paulo) de uma cidade para melhorar seus indicadores. No próximo mês, 63 comunidades dos bairros mais pobres começam a receber capacitação do Unicef para criar uma rede de proteção às crianças e aos adolescentes. Já comentei aqui que a USP (Fundação Vanzolini) inventou uma cadeira para ensinar engenharia comunitária.
Essa é lógica de uma cidade que vai, aos poucos, aprendendo a lidar com as ruas, com muitos tropeços -às vezes tombos, como a evolução dos roubos, as notas em queda de seus alunos ou o número maior de mortes e doenças causadas pela poluição. Somos, em essência, parecidos com a cracolândia, onde, em meio à devastação, aparecem a sofisticação dos museus e das salas de concertos. E, nesse final de semana, serão tantos e tão sofisticados eventos naquele símbolo da degradação (um show de fogos com dançarinos e músicos franceses, por exemplo) que o bairro se associará ao nome Luz e não às chamas do crack. A questão é saber se, no futuro, como se nota na fugaz Virada Cultural, as ilhas de civilidade formarão um arquipélago. Afinal, amanhã a Luz será, de novo, cracolândia. E São Paulo será São Paulo.
PS - André Douek, professor de fotografia, está fazendo uma experiência educativa neste final de semana. Está orientando fotógrafos amadores a ver como a população se apropria de uma cidade quando não se sente acuada pela violência e pelos carros, mas unida pela arte. Vou postar algumas fotos, já neste domingo, no catracalivre.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário